Juan Gérvas, Médico generalista rural aposentado, ex-professor de Saúde Pública, Equipo CESCA, Madrid, Espanha
Resumo
No trabalho médico, todos os dias se pode fazer um bem imenso, nesses encontros com quem sofre, mesmo nas condições infernais desta Medicina que muitas vezes é ensinada e praticada a partir de torres de arrogância com fundações na ignorância, com esse autoritarismo médico que chega a ser Síndrome de Hubris (a presunção orgulhosa, a soberba de quem ostenta um poder e acredita saber tudo).
Na prática clínica, é necessário trabalhar com o espírito oposto, o da prudência da fronesis, esse sensato saber prático que decorre, sobretudo, do autoconhecimento (lembra-te de que a decadência institucional estrutural não é desculpa para se perder o profissionalismo).
Para manter ao longo da vida o trabalho clínico com ciência, consciência e coragem é preciso: 1) constância e perseverança (somos corredores de longo curso), 2) formação rigorosa (continuada e independente), 3) amor pela profissão, 4) fazer bem o que há que fazer (100% do que há que fazer) e não fazer o que não há que fazer (não fazer 100% do que não há que fazer) e 5) encontrar um “oásis” profissional onde se sentir “normal” neste caminho laico de perfeição.
O que é um médico?
Um médico é um profissional altamente qualificado que precisa de formação contínua ao longo de toda a vida, capaz de tomar decisões rápidas e geralmente acertadas com recursos limitados e em condições de grande incerteza. Ou seja, um médico não pode esperar que “a situação seja ideal” para fazer bem o seu trabalho, pois está preparado para fazê-lo nas duras circunstâncias habituais. A cultura da queixa de “quando tudo funcionar bem, eu também” e de “não há tempo” oculta muita ignorância e uma grande falta de ética e de profissionalismo.
Dito de outra forma: de um bom médico que tenha reputação profissional e social espera-se: 1) capacidade para realizar diagnósticos certeiros e oportunos (precoces apenas quando sejam benéficos), 2) uso prudente dos recursos preventivos, diagnósticos, terapêuticos e de reabilitação para maximizar benefícios e minimizar danos, e 3) habilidade para responder adequadamente às necessidades de pacientes complexos em situações reais de múltiplas limitações.
As quatro frentes do trabalho clínico
Seja no consultório do hospital, no serviço de urgência hospitalar ou dos Cuidados de Saúde Primários, no quarto do hospital, na consulta no centro de saúde, numa sala de operações, na casa do paciente ou em qualquer outro lugar, há quatro frentes no trabalho clínico:
1/ Cuidar no sofrimento: evitar, acompanhar e/ou paliar, testemunhar e validar o sofrimento e oferecer alternativas que melhorem a situação e sejam apropriadas segundo o contexto cultural, familiar, laboral e social de cada paciente. É um trabalho artesanal, de “ajustar” o melhor da ciência à imensa complexidade de cada padecimento, ao caleidoscópio de afetos, medos, paixões, sentimentos e temores de cada pessoa. É ter em conta aquilo que é clássico do “não há doenças, mas doentes” (no sentido empírico de que “adoecer é coisa de cada um, a doença é algo geral”). É acompanhar com humildade, respeitar a dignidade de pacientes, famílias e comunidades, é amar quem sofre (no sentido de amá-los como nos amamos a nós próprios), é cuidar com compaixão e ternura. É entender a saúde como capacidade de desfrutar da vida apesar das adversidades (em contraposição à definição orgiástica da Organização Mundial de Saúde de estado completo de bem-estar físico, psíquico e social). Assim como a coragem não é a ausência de medo, mas o seu controlo, a saúde não é a ausência de adversidades, mas o disfrutar da vida apesar delas. Trata-se de exercer uma Medicina harmónica que busque a concordância com o paciente, de forma que o médico e o paciente analisem as vantagens e desvantagens das alternativas possíveis (eficácia), e escolham as mais adequadas ao paciente e à sua situação, causando menos dano (efetividade), sem esquecer sempre o ponto de vista da sociedade (eficiência). Há pelo menos três chaves para exercer tal Medicina harmónica: a) compreender e aceitar que o objetivo dos cuidados de saúde não é diminuir morbilidade e mortes em geral, mas sim a morbilidade e mortalidade desnecessariamente prematuras e medicamente evitáveis; b) promover que os médicos exerçam com duas éticas sociais fundamentais, a da negativa (saber dizer “não” com amabilidade e fundamento) e a da ignorância (partilhar o que sabemos e apontar o muito que não sabemos); e c) ter, na prática clínica, compaixão, cortesia, piedade e ternura com os pacientes e seus familiares, com os colegas, com os superiores e consigo mesmo.
2/ Aprender e ensinar (a si mesmos, a estudantes, internos e colegas, a pacientes e famílias, a gestores e diretores, etc.) de forma constante, pois não há resposta perfeita nem permanente. Tal aprender tem muito de autoconhecimento, de reflexão diária, de imaginação (por exemplo, “experiências imaginárias” em que se “desbloqueie” a mente para conceber alternativas quase impensáveis na prática, mas que permitem sonhar que um outro mundo é possível). É um aprender que vai do concreto ao geral, do teórico ao prático, com o lema de “quem só sabe de medicina, nem de medicina sabe”, e isso exige conhecimentos sobre a experiência do adoecer além do bio-tecnológico, conhecimentos oriundos da arte em todas as suas formas e da antropologia, economia, filosofia, politologia e outras áreas. Desde logo, os erros ensinam muito (se formos conscientes de que é inevitável cometê-los: todos os médicos carregam um cemitério às costas, como disse o clássico). Diante dos erros, identificá-los, entendê-los, explicá-los a pacientes, famílias e colegas, pedir desculpas, reparar o dano na medida do possível e tomar medidas para que não se repitam.
3/ Gestão dos recursos que a sociedade coloca à disposição dos médicos (em sistemas públicos e privados), entre os quais o mais importante e sagrado é o seu próprio tempo. O tempo que cada médico dedica a cada consulta-intervenção deve ser apropriado e proporcional, tentando não cumprir a Lei de Cuidados Inversos (recebe mais cuidados quem menos precisa deles, e isso cumpre-se mais fortemente quanto mais o sistema de saúde se orienta para o privado). Um médico de família em Portugal pode fazer mais de 200.000 consultas ao longo da sua vida profissional, e em cada uma delas se lhe apresentará de forma única e irrepetível o dilema ético entre a irracionalidade romântica (tudo para o paciente) e a irracionalidade técnica (tudo para a sociedade). Para resolvê-lo, naturalmente, não basta apenas o conhecimento científico, limitado e enviesado, mesmo na sua melhor versão, pois o exercício clínico tem muito de arte e de resolução inteligente de problemas insolúveis, se este quási oxímoro me é permitido.
4/ Investigação, que não é mais do que fazer perguntas importantes e tentar encontrar respostas. Por exemplo, os profissionais que chegam atrasados ao trabalho, são também os que saem mais cedo? Se vou a um congresso-curso e sou convidado por um laboratório, em que é que isso mudará a minha prática clínica? Pode ser útil na clínica medir o tempo que um paciente leva entre levantar-se da sala de espera e chegar à porta da minha consulta? Prescrevo mais antibióticos às sextas-feiras do que às segundas e porquê? Melhora o clima na consulta ter flores naturais na mesa? São precisos os exames pré-operatórios realizados no meu hospital? Por que não fazemos sessões conjuntas entre profissionais de Cuidados de Saúde Primários e hospitalares sobre os pacientes que “partilhamos” com a polícia, os tribunais e serviços sociais? Muitos médicos usam o estetoscópio pendurado no pescoço, será porque o utilizam mais do que os outros? Qual a frequência das consultas por terceiros e a que se devem? Somos conscientes de que, como médicos, não cumprir os horários é corrupção? O paciente que chora gera “alta tensão emocional”, como respondo na minha consulta? Nos corredores do meu hospital dão-se notícias terríveis às famílias dos pacientes, há forma de o fazer melhor? Etc. São questões sobre as “pequenas coisas”, aquelas que não costumam dar lugar a ensaios clínicos, mas que são chave para manter o interesse e a curiosidade durante décadas.
Para manter ao longo da vida o trabalho clínico com ciência, consciência e coragem é preciso:
1/ Constância e perseverança, estar preparados para o fracasso e a derrota, uma vez que a sociedade segue outro caminho que pretende ignorar a existência da adversidade, do sofrimento e da morte (no final, todos os pacientes acabam por morrer, pois “os corpos encontram a forma de morrer”). Não somos Jesus Cristo, não ressuscitaremos ninguém, o nosso trabalho é pequeno e humilde, apenas evitar algumas mortes evitáveis, ouvir sem julgar, aceitar uma prática de prevenção de males maiores, identificar erros, ser humildes e buscar a prática prudente da fronesis (a hubris médica típica costuma praticar-se a partir de torres de arrogância com fundações na ignorância). Somos corredores de longo curso, dispostos a manter a dignidade própria e a dos colegas, pacientes e famílias ao longo de décadas. Perdedores, sim, mas nunca exaustos. Sem esmorecer, pois sabemos que a virtude revolucionária é a constância. Assim, perdedores, sim, mas incombustíveis e indomáveis em busca de uma utopia que nos move. Mantendo o nosso compromisso ético, profissional e social com os marginalizados, não nos calamos para manter a esperança, sabendo que a desesperança é uma forma de deslealdade. A derrota não torna uma causa injusta; pelo contrário, deveria incitar-nos a continuar, porque «estamos derrotados, não amestrados». «Penso que é necessário educar as novas gerações no valor da derrota. Em lidar com ela. Na humanidade que dela emerge. Em que se pode falhar e recomeçar sem que o valor e a dignidade sejam afetados».
2/ Formação rigorosa (continuada e independente), centrada no que é frequente em cada especialidade e local, e no que é importante em geral. Sabendo que o que hoje nos parece “o estado da arte” amanhã será “a barbaridade que fizemos”, e isso não deve levar à inação, mas ser um impulso para essa formação continuada que é relativamente fácil de alcançar se se centrar na prática clínica, como já referi. Por exemplo, sessões clínicas sobre pessoas que morreram sozinhas em casa, ou sobre quem se suicidou, na forma de “autópsias sociais”, que nos ajudem a aprender e corrigir possíveis falhas e erros. Ou com sessões e divulgação de “recuos na Medicina”, os “medical reversals”, quando se demonstra que um conhecimento é errado. Também, a crítica científica e ética aos protocolos, orientações e algoritmos que supostamente “ajudam” nas decisões clínicas. Assim como a atualização constante em terapêutica, desde a cirúrgica até à farmacológica. Hoje existem recursos online muito dignos em várias línguas que trazem todo esse conhecimento de forma compreensível para o médico “médio” interessado em atualizar-se. Convém ser mais um médico “de cotovelos” (de estudo e formação pessoal) do que um médico “de ouvido” (de acompanhamento de aulas, palestras e conferências).
3/ Amor ao ofício de modo que, ao fim de cada jornada, possamos dizer que desfrutamos do que é “cada dia” e suportamos o “insuportável ocasional”. Não deveríamos entender “a vida” como o tempo que há entre o final do trabalho de um dia e o início do trabalho no dia seguinte. A vida inclui o gozo do trabalho que fazemos na nossa pequena parcela clínica, esse aprender a cada dia em cada consulta, esse fazer perguntas para melhorar. Como se suporta essa consulta difícil, esse erro incompreensível, essa consulta sagrada mal resolvida? Com amor ao ofício, desfrutando de cada encontro clínico, procurando o melhor, aprendendo com cada caso bem/mal resolvido, aceitando que sabemos muito pouco, partilhando com os pacientes e famílias as dúvidas e pedindo perdão a tempo. É, também, saber que somos heróis no trabalho no sentido de fazer o que se deve, chegar a horas, cumprir o horário e estudar constantemente.
4/ Fazer bem o que há que fazer (100% do que há que fazer) e não fazer o que não há que fazer (não fazer 100% do que não há que fazer). Conseguir isso é uma tarefa impossível, uma utopia que nos norteia e nos permite movermo-nos com certa segurança no “caminho da perfeição”, para saber que estamos no bom trilho, mas nada mais. Convém aceitar uma prática que consiga, por exemplo, fazer 80% do que há que fazer, e 20% do que não há que fazer (como consolo, no total 80+20, 100%!). As práticas de baixo valor, aquelas que produzem mais danos do que benefícios, são universalmente aceites e estão implantadas com raízes profundas; por exemplo, os check-upsem geral e as vigilâncias “da criança saudável” em particular; também os pré-operatórios já referidos, o uso de estatinas “até à morte” (literalmente), a recomendação de baixar a febre sempre e a todo o custo (inclusive com métodos físicos), o uso de corticoides intra-articulares na artrose do joelho, etc. Daí a necessidade constante de aprender e estudar, já mencionada.
5/ Encontrar um “oásis” profissional onde nos sintamos “normais” neste caminho laico de perfeição. Não somos de ferro, é difícil para nós, inclusive, o “médico, cura-te a ti mesmo”. Precisamos de um grupo com o qual nos identifiquemos, no qual nos ajudem, um oásis que nos permita descansar e recuperar forças. São o que se chamam “colegas invisíveis”, definidos já no século XVII, grupos de profissionais científicos que se reconhecem entre si, partilham estudos e descobertas e reconhecem outros profissionais como iguais, integrando-os no grupo. Existem muitos, por exemplo, nos Cuidados de Saúde Primários em Espanha e Portugal, os SIAP (Seminarios de Innovación en Atención Primaria). Precisamos de um grupo para nos sentirmos acompanhados, para criar conhecimento coletivo, para saber que passamos “a chama” às gerações jovens.
Síntese
Podemos manter ciência, consciência e coragem na prática clínica ao longo de toda a vida (e não perecer no esforço)
* se formos conscientes das quatro frentes que sustentam o trabalho clínico
- cuidar no sofrimento
- aprender-ensinar
- gerir
- investigar
* e se formos capazes de
- ter constância e perseverança
- nos formarmos continuamente
- ter amor ao ofício
- tentar fazer bem 100% do que há que fazer, e deixar de fazer 100% do que não há que fazer
- encontrar um “oásis” profissional onde nos sintamos “normais” neste caminho laico de perfeição
Resumo da conversa com o autor em 24 de outubro de 2024 em Toledo (Espanha), na abertura do ‘VI Congresso Médic@os Jóvenes’ https://www.comtoledo.org/vi-congreso-de-medicos-jovenes-del-24-al-26-de-octubre/Participação pro bono. É um resumo “oral”, se precisar de alguma bibliografia que tenha inspirado um parágrafo concreto, contacte o autor jjgervas@gmail.com
Disponível também em vídeo https://ahoramqnunca.blogspot.com/2024/11/como-mantener-lo-largo-de-toda-la-vida.html
Tradução de Mónica Granja, Porto (Portugal), Medicina Geral e Familiar
monicagranja66@gmail.com
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